A maioria da população palestina é mulçumana e, em muitos casos, os discursos a serviço dos opressores tendem a usar falsas concepções acerca do Islã para caluniar o povo palestino e suas organizações. Portanto, conhecer o Islã se constitui em uma das múltiplas formas de conhecer melhor o povo palestino.
O Islã possui cerca de 2 (dois) bilhões de adeptos em todo o mundo e ocupa o segundo lugar dentre as religiões do planeta, ficando atrás, apenas, do Cristianismo. No entanto, apesar dessa grandiosidade e do fato de existir excelente trabalho educativo em língua portuguesa acerca do tema, essa religião ainda é pouquíssimo conhecida no Brasil e as percepções gerais do público nacional são permeadas pelos discursos perpetrados pelos meios de comunicação hegemônicos, os quais tendem a associar os mulçumanos ao “terrorismo”, à opressão das mulheres e ao extremismo.
No ano de 2009, o intelectual brasileiro Samuel Sérgio Salinas[1] publicou uma importante obra acerca do Islã e sua história, de modo a trazer ao conhecimento do público as origens e os principais elementos constitutivos da chamada Era de Ouro da civilização Islâmica. O livro tem prefácio do Professor Lejeune Mirhan e, ao longo de nove capítulos, aborda assuntos primordiais para compreender o Islã e a civilização dele decorrente. Em linhas gerais, há cinco grandes temas que podem ser destacados acerca da obra.
Segundo o autor, o Islã estabeleceu, no século VII da Era Comum, o alicerce para a união dos povos da Península Arábica, a qual era formada, majoritariamente, por tribos beduínas. Dessa maneira, “somente o Islã ofereceu aos árabes um pensamento coerente, apto a transcender os limites de sua existência cultural restrita, possibilitando-lhe apreciar o contexto do pensamento oriental antigo e seus tesouros culturais e científicos.” (Salinas, 2009, p. 117). Nesse processo, o monoteísmo islâmico foi crucial para a consolidação da religião na Península e base elementar de sua expansão: “Maomé cristalizou o sentimento árabe e iniciou a revitalização de suas aspirações, consolidando pelo monoteísmo a unidade que permitiria a expansão posterior”. (Salinas, 2009, p. 55).
Os povos beduínos da Península tinham em comum a língua árabe, a qual é o idioma do Alcorão e se constitui em um dos elementos estruturais da religião islâmica. Assim, para Salinas (2009), a língua árabe representa o “fundo cultural comum”, bem como “agente e veículo da vida intelectual” do mundo mulçumano, pois “Islamismo e língua árabe conviviam inseparáveis. Era a língua do cotidiano, da administração e dos preceitos religiosos.” (SALINAS, 2009, p. 123). A poesia, “peculiaridade característica da cultura árabe, se constitui, também, em uma das tradições beduínas incorporadas pelo Islã, a qual se expressa pelas recitações do Livro Sagrado.
“A poesia é devedora da tradição beduína, dos homens do deserto, produto do orgulho árabe, do gosto do exotismo e da nostalgia entre os poetas, de uma vida natural, demonstração de que a antiga poesia manteve sempre novos adeptos.”
Samuel Salinas, 2009, p. 115.
No decorrer da obra, o autor também problematiza a rápida expansão do Islã, a qual abrangeu, inicialmente, as regiões do Levante (Palestina, Líbano e Síria), Egito, Pérsia e Iraque, de modo a consolidar, ao longo do tempo, uma civilização que se estendeu, tanto a leste quanto a oeste da Península Arábica, chegando a lugares como Espanha, Índia e Indonésia. Com efeito, “menos de cem anos depois da morte do Profeta, o império dos Omíadas [dinastia mulçumana que durou de 661 a 750] já se estendia da Índia e da fronteira chinesa até Marrocos e Espanha; do Himalaia até os Pirineus.” (Salinas, 2009, p. 75).
Três características fundamentais da expansão do Islã foram seu caráter civilizatório, progressista e não violento. Assim, o autor sinaliza que a expansão islâmica constituiu uma civilização mulçumana que articulava religião, cultura, vida comunal e atividades estatais, a partir da absorção das culturas e tradições dos locais aos quais o Islã chegava, de maneira que, “a religião foi aprofundada e acrescida pela contribuição dos vários povos”. (Salinas, 2009, p. 60). Nesse cenário, havia a rejeição ao individualismo e a valorização da vida comunal, constituindo, portanto, um caráter coletivo, que, certamente, se choca, até os dias atuais com a natureza individualista do liberalismo ocidental.
“A intensa e profunda vida religiosa, embebida de concepções éticas adquiridas durante o empenho de superar o tribalismo, as investidas no deserto contra outras tribos, certamente influenciaram a existência comunal, pouco propícia ao desenvolvimento do individualismo”.
Samuel Salinas, 2009, p. 86.
Como outros elementos progressistas desse processo, cabe destaque ao predomínio da igualdade entre os seres humanos perpetrada pelo Islã, princípio este totalmente rejeitado pelas teocracias ocidentais: “predomina na visão religiosa e na conduta diária o princípio de igualdade entre os seres humanos. Por essa via pode-se avaliar o porquê da repulsa que manifestam, contra o islamismo, as monarquias de direito divino e as teocracias, no sentido ocidental do termo.” (Salinas, 2009, p. 73). O caráter não violento se reflete no respeito às religiões praticadas nas regiões conquistadas e no fato de que não se tentava impor o Islã à força, haja vista isso ser proibido pelas leis corânicas: “sobre o efeito das injunções islâmicas, o conquistador era obrigado a respeitar e proteger os conquistados, especialmente aqueles que manifestavam fé no cristianismo e no judaísmo. A vitória devia ser obtida não pela espada, mas pelo exemplo”. (Salinas, 2009, p. 54).
Um outro grande tema abordado pelo autor, diz respeito à valorização do saber, da ciência, da cultura e do desenvolvimento no âmbito da civilização mulçumana. Essa circunstância está intrinsecamente relacionada com o fato de que “a ciência e o conhecimento são virtudes do Islã clássico. […]. Nunca o mulçumano é compelido a desprezar ou ignorar as coisas deste mundo. Pelo contrário, compete-lhe organizar a cidade terrestre.” (Salinas, 2009, p.115). De acordo com o autor, em uma época na qual a Europa ignorava o pensamento grego, o encontro com a cultura grega, especialmente na Síria, permitiu a confluência do arabismo e do helenismo em diversos campos, como a gramática, a mística e o direito.
“A idade de ouro das pesquisas e produção científica islâmicas situa-se na Idade Média da cultura europeia, entre os séculos IX e XIII, mais precisamente durante o califado abássida. A herança grega, no campo científico, não foi meramente copiada, mas trabalhada, enriquecida e adaptada às características islâmicas.”
Samuel Salinas, 2009, p. 122.
Sob esse cenário de impulso ao conhecimento, surgiram importantes cientistas e filósofos, os quais influenciaram o pensamento ocidental, tais como Ibn Sina (Avicenna), Ibn Rushd (Averróis) e Ibn Khaldun. Assim, estabeleceram-se as condições para o desenvolvimento de diversas áreas da ciência, tais como o direito, a filosofia, a botânica, a álgebra, a geometria, a astronomia e a medicina. Particularmente no que tange aos estudos anatômicos por cientistas mulçumanos, o autor destaca que “estudos como o trabalho elaborado no século XV sobre a anatomia do corpo, por Mansur Ibn Al Faquih, eram o mais completo diagrama jamais visto da estrutura circulatória e sistema nervoso do homem.” (Salinas, 2009, p. 132).
“Averróis exerceu influência sobre os pensadores cristãos e judeus e é situado no apogeu da filosofia árabe, o maior filósofo e pensador aristotélico do Ocidente Islamizado. Os escolásticos da Idade Média cristã denominaram-no de O Comentador por excelência.”
Samuel Salinas, 2009, p. 118-119.
No campo do direito, o autor aponta, a partir de suas referências, que a ciência jurídica islâmica antecedeu o direito eclesiástico romano e a teologia escolástica e lamenta o fato desse conhecimento ser desprezado pela academia brasileira: “Infelizmente esse direito é ignorado nas universidades mais importantes do Brasil, nos quais não existem cursos aptos a enriquecer o conhecimento jurídico com a enorme proliferação do direito mulçumano. Escasseiam, são até raridade, livros sobre o tema na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, de São Paulo.” (Salinas, 2009, p.108).
A obra também delineia a presença mulçumana na Europa, particularmente na Península Ibérica, por oito séculos (de 711 a 1492), o que, em geral, é pouco abordado pela historiografia ocidental contemporânea. Em linhas gerais, o autor destaca que a presença islâmica, principalmente a partir da conquista da Andaluzia espanhola, aproximou os mulçumanos dos europeus sob o aspecto cultural, político e econômico, numa constante e fecunda aproximação. Na Espanha mulçumana, as comunidades cristãs e judias eram respeitadas e houve o florescimento cultural, arquitetônico e científico, que se manifestava em diversas dimensões da vida cotidiana: “A grande mesquita de Córdoba, os jardins, as fontes, as alamedas de Alhambra, a poesia de versos árabes e cristãos e refrãos em romance, a irrigação dos jardins de Sevilla e Valência, a sabedoria filosófica e científica eram monumentos da Espanha islâmica. Essa Espanha era o ponto focal da difusão na Europa da filosofia grega.” (Salinas, 2009, p. 211).
Sérgio Salinas também aponta que a Península Ibérica se beneficiou das descobertas mulçumanas, particularmente na área náutica, com o desenvolvimento de tecnologias como o astrolábio, o desenho de navios e o uso da bússola, o que ajudou a impulsionar as inovações que culminariam no processo das Grandes Navegações: “saberes adquiridos no Oriente mulçumano […] permitiram aos europeus aprimorarem seus métodos de navegação, inclusive para iniciar os descobrimentos que lhes permitiram contornar o continente africano e abrir o caminho para a América.” (Salinas, 2009, 182).
A Reconquista da Espanha, conduzida pelos “Reis Católicos” (Fernando de Aragão e Isabela de Castella), levou a cabo o massacre, a expulsão dos mulçumanos e judeus, a proibição da língua árabe e destruição de bibliotecas, o que prejudicou a troca de civilizações que predominou durante a Era Islâmica: “A expulsão dos árabes e judeus e a Inquisição, após a denominada Reconquista dos territórios árabes pelos Reis Católicos da Espanha, acarretaram enorme retrocesso na relação entre povos e crenças, quer na Península, quer nas colônias espanholas ou portuguesas”. (Salinas, 2009, p. 64).
“A suposição de que os conflitos religiosos entre cristãos e mulçumanos decorriam de profundas divergências ideológicas não é real. Os cristãos praticamente ignoravam a religião islâmica, nada sabiam do Corão […]. O islamismo era visto como mais uma heresia cristã merecedora de repressão e extermínio, como tantas outras.”
Samuel Salinas, 2009, p. 222
Como outra grande temática abordada pelo autor, cumpre destaque à presença mulçumana no Brasil, a qual é abordada no capítulo 7, demasiadamente curto, com apenas cinco páginas, mas que delineia importantes elementos acerca do tema. Salinas sinaliza a existência de comunidades islâmicas na Bahia, no Rio de Janeiro e em Alagoas, chegando a possuir culto organizado: “Na Bahia, mercê da maior concentração de negros, o islamismo propagou-se rapidamente e passou a constituir a religião dos negros mais cultos e inteligentes.” (Salinas, 2009, p. 230). De acordo com o autor, escravos mulçumanos tinham índole guerreira e maior tendência à insubmissão, o que os levou a serem protagonistas de vários levantes, tal como a Revolta dos Malês, em 1835: “tais convicções religiosas foram, em verdade, a causa dos levantes de negros islamizados em vários pontos do território brasileiro, na Bahia especialmente, onde tiveram uma expressão mais alta na Revolta dos Malês.” (Salinas, 2009, p. 230).
Dessa maneira, o autor apresenta uma análise sintética sobre o tema, porém, sua abordagem demonstra que, apesar de poucos estudos nas escolas e nos centros acadêmicos sobre o assunto, “o Brasil, bem como outros países latino-americanos, partilhou influências mulçumanas, embora nem todas tenham lançado raízes profundas em nossos povos. Atualmente os estudos a respeito parecem minguar em nossa historiografia.” (Salinas, 2009, p. 233).
Em síntese, o livro de Sérgio Salinas se constitui em uma valiosa obra brasileira acerca do Islã, e se constitui em uma importante introdução ao tema, em um cenário nacional revestido por escassa bibliografia, bem como um generalizado desconhecimento e preconceito da sociedade brasileira em relação a esta influente religião. O livro está disponível para venda no sítio eletrônico da Editora Apparte.
[1] Advogado e sociólogo, ex-docente do Instituto de Economia da UNICAMP e Procurador de Justiça aposentado e fundador do Ministério Público Democrático. Sua obra tem caráter multidisciplinar e abrange temáticas históricas, políticas e sociais, tais como: O bando dos quatros: a industrialização no sudeste da Ásia (1985); Do feudalismo ao capitalismo: transições (1994); Antes da Tormenta: origens da Segunda Guerra Mundial 1918-1939 (1996); A América e o Capital (2001); dentre outros.